Perfil_Florence

Florence Dagostini

15. Novembro. 1980
Campinas SP

Entrevista realizada em março/2017.
Revisada em fevereiro/2019.

Consagrada no mercado publicitário, Florence Dagostini já compôs o time de criação das maiores agências do país, entre elas a Agência Gringo, Wunderman, DM9 e Cubo. Inquieta desde sempre, trilhou sua carreira em busca de aprender cada vez mais. Crítica, nunca se acomodou com um trabalho sem propósito e, por isso, em 2015, Florence aceita o maior desafio da sua trajetória e decide passar um ano e meio alocada em uma comunidade de artesãs do sertão de Alagoas, desenvolvendo um projeto com o objetivo de promover a geração de renda e inovação através de uma interface entre o design e as técnicas artesanais da comunidade local.

Em Alagoas, Florence foi a ponte entre a comunidade de bordadeiras e os renomados irmãos Campana para a realização do projeto e retorna a São Paulo transformada, determinada a agregar cada vez mais características e referências do fazer manual ao seu trabalho enquanto designer. Além disso, a experiência também transforma um outro aspecto da sua vida profissional e Dagostini passa a se questionar muito mais a respeito da função social do seu trabalho. Com isso, determina-se a não retornar para a realidade das agências, que realizam trabalhos puramente comerciais e em prazos extremamente curtos, com a qual não mais se identificava.

A partir de então, a designer passa a dedicar sua carreira ao trabalho como freelancer, selecionando cuidadosamente os projetos nos quais se envolve, já contando com clientes de grande porte como a sede norte americana da Google, empresa a qual representa no Brasil, responsável por toda a curadoria de artistas e a direção de arte para criação dos stickers do Google Allo, novo aplicativo de troca de mensagens desta gigante da tecnologia.

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Você saberia dizer qual é a principal ambição do seu trabalho? Talvez quais eram seus objetivos no começo da carreira e como eles se transformaram ao longo do tempo?

Quando eu entrei na faculdade, o Design estava em um outro momento no país. Foi a época em que os Irmãos Campana bombaram e quando a profissão estava começando a ser conhecida. Eu saí da faculdade questionando até que ponto o design servia apenas para deixar as coisas mais bonitas.

Quando eu fui trabalhar com propaganda, como diretora de arte, em vários momentos eu sentia que eu só estava servindo pra “dar um tapa no visual” e vender algo. Mas para mim, o design nunca foi uma mera questão estética; eu nunca consegui enxergar o design dissociado de uma problemática social. Quando falo função social, aliás, não é só sobre resolver os problemas das pessoas, não se trata apenas do que você vai entregar como produto final ou se ele é sustentável ou não, se é bonito ou não, mas de ter consciência de como foi todo o processo de produção desse objeto até que se chegasse naquele produto final. Quando o trabalho é mais relacionado à indústria isso se perde um pouco, mas trabalhando com gente, ter essa consciência é possível. Com o tempo, eu percebi que gosto disso e que eu levo jeito para trabalhar com pessoas.

No projeto do IPTI (2015), muito antes de resolver um produto, a gente tinha que criar um ambiente de trabalho que fosse propício para isso, no qual pessoas acostumadas a fazerem sempre a mesma coisa se sentissem à vontade para criar. Isso porque as artesãs eram muito inseguras sobre o próprio trabalho e não se sentiam preparadas para opinar se achavam algo bonito ou feio, por exemplo. Elas achavam que não sabiam, que eu era a pessoa estudada e por isso eu deveria dar as respostas. Então, foi uma coisa apaixonante, esse processo de criar um grupo de trabalho, engajar as pessoas… perceber a diferença que faz a forma como você leva o projeto para elas e mostrar onde vai chegar aquele trabalho. De algum jeito eu consegui envolver todas as pessoas no processo criativo, dando espaço para elas criarem e brilharem com suas criações.

Acredito que dessa forma, o trabalho final foi muito mais genuíno e mais incrível: com a mão de todos. Esse processo é muito mais valioso do que você simplesmente mostrar um papel e dizer “vamos desenvolver esse projeto aqui, vocês são a mão de obra”. Foi aí que eu entendi que o design é relação, antes de ser de produto ou gráfico, ou de qualquer outra coisa. Com empatia e conexão, conseguimos propor um trabalho capaz de engajar e a maneira como você desenvolve esse projeto muda completamente o resultado final.

E acho que isso é algo que a gente está descobrindo agora na área. Inclusive, sobre esse assunto, tenho alguns designers que são grandes referências pra mim, como a Paula Dib, que já ganhou o Trip Transformador, Prêmio do Itaú Cultural. Foi ela quem me indicou pra esse projeto no nordeste. Essa é uma forma totalmente diferente de ver o design e, pra mim, o que eu gostaria de fazer como profissional, a minha ambição profissional, hoje, passa por aí.

Existe algum tipo de militância no seu trabalho?

Independente da área, eu acho que sempre tem espaço pra isso, depende do quanto você vê e questiona e do seu olhar crítico diante das coisas, também. Por exemplo, quando eu trabalhei em agências, tive algumas experiências desagradáveis, mas muitas mulheres lá não questionavam as mesmas coisas. Muitas estavam adequadas e aceitavam aquelas situações. Mas se na base da pirâmide tem tantas mulheres quanto homens, porque no topo só tem homens? A tendência deveria ser que algumas mulheres da base subissem, mas isso não acontecia. Chegavam apenas uma ou duas. São questões óbvias de se questionar, mas naquela época, falar sobre isso parecia ser uma forma de justificar uma incompetência sua, como se dizer que o ambiente era machista fosse uma desculpa por você não ter o cargo X ou Y. Hoje eu noto que ao longo dos anos as mulheres começaram a acordar para isso e hoje, por exemplo, tenho amigas que tem grupos militantes dentro das agências, o que eu acho incrível. Porque é uma forma de mudar o sistema de dentro dele.

No trabalho lá no nordeste o mesmo problema acontece, mas numa outra abordagem. Você não pode chegar num ambiente super patriarcal, machista, e querer mudar tudo do nada. A partir do momento em que você contribui para que essa mulher não se veja mais como uma mão de obra barata e sim como alguém capaz de criar, no entanto, se abre uma espécie de “portal” na cabeça delas, de que elas são artistas e não um peão bordando; elas vêem que podem criar.

Eu sempre enxerguei isso quando estive lá e falava isso pra elas, como uma forma de militância, mesmo. Sobre elas enxergarem o poder delas e sobre o fato de elas serem detentoras de uma tradição que faz parte da história do Brasil. Tentei mostrar que com linha e agulha, elas podiam fazer mil coisas diferentes do que estavam acostumadas. Elas nunca tinham visto o Pinterest na vida, por exemplo. Um dia eu mostrei o site para elas e ensinei todas a mexer. Elas ficaram fascinadas! Claro que num primeiro momento o que elas vão querer fazer é copiar, pois é o que estão habituadas a fazer com seus desenhos antigos, mas já era um grande salto para que elas pudessem olhar para o que tinham feito com orgulho.

No fim do projeto, a luminária dos Campana foi um bordado com o autorretrato de cada uma delas. A princípio elas odiaram a ideia de bordarem elas mesmas, porque elas se achavam horrorosas, mas depois estavam tão orgulhosas, que até pediam para levar o bordado para casa e mostrar para os maridos. Não é que o projeto por si só promoveu isso tudo, mas elas tiveram essa faísca e para mim, essa é uma forma de militância.

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Quais trabalhos seus você mais se orgulha e que mais tem a ver com você?

Eu tenho uma característica de que eu não ligo muito para o tamanho do cliente, então para mim, trabalhar para o Google não é mais relevante do que um trabalho eu fiz para uma marca pequena. Na verdade, eu adoro trabalhar para clientes menores. A gente está vivendo um momento, aqui em São Paulo, em que muitas pessoas estão empreendendo e a economia criativa tem se movimentado. Um monte de gente está montando negócio: marca própria, café, restaurante, muita coisa está acontecendo e com isso, eu sinto que existe uma demanda crescente por Design. Sinto que esses novos empreendedores sabem o valor do design e sabem como isso agrega para o produto final. Por outro lado, eles não tem grana para pagar uma agência grande ou um grande estúdio de design pelo serviço de criação. Então acaba surgindo muito trabalho a partir dessa demanda. É um cliente que não tem tanto dinheiro para investir no projeto, mas às vezes eu acho que são os melhores trabalhos, porque as pessoas dão abertura e confiam muito mais em você. Você sente que está de fato contribuindo para o negócio… é como se estivesse dando a cara ao filho de alguém, então eu adoro participar desse processo.

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Por exemplo, vocês já ouviram falar em um espaço cultural chamado Alto do Bomra? Funcionava na laje da antiga fábrica da Fiorucci, no Bom Retiro, que é um bairro muito marcado pela cultura coreana, aqui em São Paulo, então eu pesquisei sobre tipografia coreana, sobre elementos e formas presentes da caligrafia deles para desenvolver o logo e a partir disso, derivam as formas e padrões que criaram toda a identidade do lugar.

Tem um outro projeto que fiz para uma marca de caiaques que se chama PROA, uma guardaria com espaço físico para as pessoas que fazem canoagem deixarem seus caiaques lá, então é um espaço multifuncional e eles também representam outras marcas, por isso foi um projeto que precisou ser pensado para funcionar em diferentes aplicações e ele me deu liberdade criativa para trabalhar, então consegui fugir do clichê do barquinho que seria o esperado. Eu gosto muito da forma como a gente conseguiu desenvolver essa marca, hierarquizando os 3 segmentos deles: a área de bem estar, coach esportivo, a parte de canoagem, mesmo, que são as vendas dos Caiaques em si e a guardaria, onde eles guardam os barcos dos clientes. A gente dividiu por cor, eu criei também uma padronagem de azulejaria, que usei no cartão, estamos desenvolvendo um avental para a cozinha, que vai ter um tecido com a textura aplicada em silk. O pessoal vai bordar e tal, vai ter um trabalho bem manual e eu adoro me meter nessa parte, gosto de chegar até esse ponto do processo.

Além desses, tem a DaDa, um projeto pessoal meu, no qual busquei justamente experimentar de uma forma mais livre, com colagens em papel e traduzindo o resultado, depois, para superfícies têxteis.

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O que seria o mundo ideal do design gráfico pra você?

Acredito que seria um cenário em que a gente tivesse muito tempo disponível para os projetos e em que nós fossemos vistos como um investimento necessário. Um cenário no qual a gente conseguisse criar espaços de experimentação nas nossas rotinas e que isso fosse enxergado pelo cliente, como uma oportunidade de investir em um trabalho melhor, porque as demandas de tempo e prazo sempre acabam inviabilizando um trabalho de experimentação livre. Eu tenho uma grande referência, que pra mim é o mais próximo do ideal: um TED do Stefan Sagmeister, no qual ele fala, resumidamente, que sempre trabalhou muito e chegou num ponto em que o mundo inteiro queria trabalhar com ele. Ele tinha um estúdio famoso, os melhores clientes (Jay-Z, Rolling Stones…), mas ele percebeu que estava sempre se repetindo dentro do seu próprio estilo. Aí ele pensou que iria trabalhar a vida inteira e que só quando faltassem 20 anos pra morrer, ele poderia gozar da vida e aproveitar. Ele decidiu pegar esse tempo de aposentadoria e fracionar em anos sabáticos ao longo da trajetória profissional dele, antes de esperar estar velho e sem energia. Então ele criou um sistema em que ele trabalha 7 anos e tira 1 ano sabático de férias, durante esse ano ele some, o estúdio dele segue funcionando, mas ele viaja. Ele não fica passeando como turista, no entanto, ele pesquisa o lugar, busca entender a cultura, a comunidade… ao fim desse ano, ele começa a incorporar tudo o que aprendeu nos seus projetos de design, porque ele volta com uma linguagem completamente nova e diferente.

Claro que não daria para todo mundo tirar sabático, mas ser capaz de criar bolhas, dedicar um tempo para a experimentação livre e descompromissada… eu acho que esse tempo nunca é perdido e é a partir daí que surge a inovação. A criação está no momento que você conecta coisas completamente dissociadas, que nunca tinham se unido antes. Como a gente está sempre atendendo um briefing, atendendo a demandas específicas, fica muito difícil brincar e se divertir no processo, ter a chance de alcançar o novo a partir do acaso.

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